Nas últimas décadas, a presença organizada e visível de segmentos evangélicos na política brasileira deixou de ser um fenômeno isolado para tornar-se uma força estruturada no Congresso, em governos e em agendas públicas. Essa influência não é apenas numérica — traduzida pelo crescimento da chamada “bancada evangélica” —, mas também programática: grupos religiosos passaram a disputar diretamente a formulação de políticas sobre educação, direitos reprodutivos, direitos LGBTQIA+, segurança pública e cultura moral. Pesquisadores e institutos internacionais têm destacado esse movimento como uma transformação significativa do campo político brasileiro.
Há um aspecto explícito e retórico nesse processo: lideranças e correntes evangélicas passaram a reivindicar um papel público mais assertivo, com discursos que chegam a declarar que “chegou a hora” da igreja governar ou orientar políticas públicas, o que expressa uma visão de atuação que vai além da mera presença eleitoral — trata-se de reivindicar legitimidade normativa para impor valores religiosos no espaço laico do Estado. Esse diagnóstico não é mera retórica jornalística: estudos etnográficos documentam discursos e práticas que visam ampliar o papel político das igrejas evangélicas.
Exemplos recentes e concretos: legislação e pautas
Um exemplo paradigmático do tipo de iniciativa legislativa apoiada por parlamentares alinhados a pautas religiosas conservadoras é o Projeto de Lei nº 1.904/2024 (PL 1904/24), que propôs equiparar o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples — inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro — e, assim, restringir fortemente as exceções previstas no ordenamento jurídico brasileiro. A proposição gerou forte reação de organismos de direitos humanos, de profissionais de saúde e de movimentos de defesa dos direitos reprodutivos, por representar retrocessos nas garantias de atendimento a vítimas de violência sexual.
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), religioso e parlamentar associado a pautas conservadoras, foi autor/relacionado a iniciativas desse tipo — o que exemplifica como parlamentares com perfil religioso podem converter convicções morais em projetos de lei que alteram direitos civis. A tramitação e a publicidade em torno desses projetos (e as propostas subsequentes de “compensação” como aumento de pena para estupradores) ilustram uma estratégia legislativa dupla: restringir direitos reprodutivos e, ao mesmo tempo, buscar medidas punitivas que sirvam para legitimar politicamente o recuo nas exceções. As discussões em torno do PL e as tentativas de articulação parlamentar geraram amplo debate e críticas na imprensa e em setores da sociedade.
Outro episódio representativo foi a mobilização parlamentar para sustar diretrizes do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) relativas ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, com projetos aprovados em plenário que dificultam o acesso ao aborto legal dessas vítimas. Votações com ampla maioria sobre temas dessa natureza mostram que a agenda conservadora, em grande medida articulada por parlamentares alinhados a grupos religiosos, tem eficácia prática em aprovar medidas que alteram o cotidiano jurídico e institucional da proteção a direitos. (Registro de votação e notícias da Câmara em novembro de 2025 evidenciam essas movimentações.)
Impactos concretos sobre minorias e sobre a laicidade
As iniciativas acima não são neutras: atingem desproporcionalmente mulheres pobres, negras e meninas — grupos que estatisticamente sofrem maior incidência de violência sexual e possuem menos acesso a serviços de saúde e ao sistema de justiça. Ao propor retrocessos nas condições de acesso ao aborto legal ou dificultar protocolos de atendimento, a legislação em debate pode transformar uma questão de saúde pública em um vetor de desigualdade e violência institucional.
Além disso, a tentativa de impor normas de cunho religioso ao conjunto da sociedade confronta diretamente o princípio constitucional da laicidade do Estado: quando políticas públicas são projetadas para refletir doutrinas religiosas específicas e não a universalidade dos direitos civis, corre-se o risco de criar privilégios normativos para determinados grupos de fé e de restringir a liberdade de crença, de culto e a diversidade de convicções no espaço público.
Estratégias políticas e simbólicas
A presença evangélica na política se operacionaliza em várias frentes: proposição de leis (como as descritas), nomeações em cargos públicos, mobilização de bases congregacionais para pressionar parlamentares e uso de rádios, canais e redes sociais ligados a igrejas para difundir pautas e narrativas. O resultado é uma visibilidade e capacidade de agenda que dificilmente se restringe ao âmbito confessionário — ela redefine prioridades do debate público. Pesquisas e relatórios analisam essa convergência entre organização religiosa e correlação eleitoral como uma fonte de poder político crescente.
Hipocrisia e contradições na retórica política
Um padrão recorrente nas resistências críticas é a contradição entre o discurso moralizador e atitudes concretas: enquanto alguns líderes religiosos advogam publicamente por “valores da família” e por proteção às crianças, certas proposições legislativas resultam em políticas que aumentam o sofrimento de vítimas (por exemplo, restringindo o acesso a serviços de saúde essenciais após violência sexual). Essa dissonância — entre a retórica de defesa dos “valores” e os efeitos práticos das medidas propostas — é frequentemente apontada por organizações de direitos humanos, profissionais da saúde e juristas como um exemplo de hipocrisia política: o discurso de proteção se converte, legislativamente, em desproteção efetiva. Relatos jornalísticos e notas técnicas de organismos especializados documentam esse confronto entre discurso e impacto.
Perspectiva crítica final
A interseção entre política e religião é complexa e historicamente presente em muitas sociedades; contudo, quando projetos orientados por convicções religiosas buscam moldar o Estado a partir de um único padrão moral, corre-se o risco de minar liberdades individuais, pluralismo e direitos fundamentais. O desafio democrático consiste em equilibrar a participação legítima de cidadãos religiosos na política com a preservação de um Estado que proteja direitos universais sem subordinar-se a prescrições confessionais específicas.
Isso exige, na esfera pública e acadêmica, a vigilância sobre projetos legislativos, a produção de evidências sobre seus impactos (principalmente sobre populações vulneráveis) e a articulação entre movimentos sociais, instituições científicas e atores jurídicos para defender a laicidade e os direitos humanos. Sem esse contraponto, medidas aparentemente “morais” podem se traduzir em retrocessos concretos para grandes parcelas da população.
Referências selecionadas (fontes consultadas)
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Análise sobre a influência crescente dos evangélicos na política (instituto/think tank): SWP — German Institute for International and Security Affairs. Stiftung Wissenschaft und Politik (SWP)
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Etnografia e análise sobre o discurso “é hora da igreja governar”: artigo publicado na SciELO. SciELO
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Projeto de Lei nº 1904/2024 (PL que equipara aborto após 22 semanas a homicídio) — registro e matéria da Câmara dos Deputados. Portal da Câmara dos Deputados+1
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Cobertura jornalística e votação sobre projetos que dificultam o aborto legal para crianças e adolescentes vítimas de estupro (ex.: CartaCapital, Gazeta do Povo, CNN Brasil). CartaCapital+2Gazeta do Povo+2
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Notas e manifestações de setores de direitos humanos e instituições acadêmicas sobre efeitos dos projetos (ex.: notas de repúdio e análises do FBSP e universidades). Serviços e Informações do Brasil+1
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