O juiz Sérgio Moro conseguiu se desqualificar
mundialmente ao aceitar ser ministro de Jair Bolsonaro. Em artigo ao jornal Público, de Lisboa, o juiz
Manuel Soares, presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes
Portugueses, “acaba” com o magistrado da lava jato. “Quanto menos confusão
houver entre política e justiça, melhor para a sistema político democrático e
melhor para o cidadão”, ensina o lusitano.
Justiça e política, água e
azeite
por
Manuel Soares*
Há tempos, antes da eleição de Bolsonaro,
falava com juízes brasileiros sobre a Operação Lava Jato, o juiz Sérgio Moro e
a perigosa exposição do judiciário a dúvidas sobre a condenação do
ex-Presidente Lula. Era evidente o desconforto desses juízes com as atitudes de
Moro, não na condução do processo – aí todos me afiançaram que é um juiz
competente e íntegro – mas no excessivo protagonismo que o fez andar pelo mundo
fora a falar do caso. Qualquer pessoa sabe que isso é errado. Quanto mais
atenção pública há sobre o caso, mais o juiz deve estar calado.
A ida de Moro para o governo do Brasil é
errada sob todos os pontos de vista. É errada para Bolsonaro porque não podia
ter dito em campanha que Lula vai apodrecer na cadeia e depois levar para
ministro o juiz que o prendeu e condenou. É errada para Moro porque justificar
esse acto como uma forma de dar continuidade à sua militância anticorrupção é
inaceitável – a única causa em que os juízes podem militar é a da Justiça e da
Lei. E é errada para o sistema político porque uma democracia não pode viver
sob a suspeita de ter havido interferência ilegítima dos tribunais numa eleição
presidencial.
O que acabo de dizer não envolve nenhum juízo
de valor sobre a eleição de Bolsonaro nem sobre as suas qualidades para ser
presidente e muito menos sobre a culpabilidade de Lula. Como juiz, o que me
interessa relevar é o dano causado na imagem de imparcialidade da justiça e no
princípio da separação de poderes, precisamente no momento em que esses valores
deviam ser mais protegidos, quando a acção dos tribunais incide sobre pessoas
que exercem cargos políticos.
Em Portugal não há memória de tamanha
promiscuidade. Meneres Pimentel só foi nomeado juiz do Supremo Tribunal de
Justiça anos depois de ter sido ministro da justiça e da reforma
administrativa. Laborinho Lúcio tinha sido juiz e procurador, mas quando foi
para ministro da justiça estava há muitos anos afastado dos tribunais. Fernando
Negrão cessou a carreira de juiz para ir para a política. A actual ministra da
justiça, Francisca Van Dunem, fez a sua carreira toda no Ministério Público e
acabou por tomar posse como juíza do Supremo Tribunal de Justiça quando já
estava em funções no governo. Há, além disso, uma tradição de presença de
juízes noutras funções governamentais, nomeadamente como secretários de estado,
directores-gerais, chefes de gabinete, assessores e adjuntos.
Nenhuma destas situações é comparável com a
de Moro no Brasil. Nenhum juiz foi para um governo depois de ter proferido
decisões em processos de tanta relevância e actualidade política. E não
acredito que um caso desses pudesse acontecer em Portugal. Nenhum político
ousaria convidar para ministro um juiz que tivesse acabado de prender um
candidato numa eleição presidencial; nem alguma vez um juiz se atreveria a ir
para ministro nessas circunstâncias.
Mas a verdade é que a lei não proíbe isso,
como devia. O Estatuto dos Magistrados Judiciais em vigor permite que juízes
ocupem cargos políticos no Governo, mediante autorização do Conselho Superior
da Magistratura, que em regra é concedida. Mais grave ainda, no Estatuto que
está neste momento em revisão, prevê-se que o exercício de funções como membro
do Governo no Ministério da Justiça passe até a ser equiparado a outras funções
exercidas por juízes em comissões de serviço de natureza judicial, como, por
exemplo, as de juiz presidente de tribunal ou de inspector judicial. Esta
solução não tem pés nem cabeça. Não tem o mínimo sentido equiparar funções
típicas de juiz, exercidas no quadro da orgânica judiciária, com funções
iminentemente políticas, exercidas num quadro de subordinação e confiança
partidária.
Os juízes reprovam essa possibilidade. O
Compromisso Ético que aprovaram em 2008 diz o seguinte: “o juiz, para preservar
a sua independência e imparcialidade, rejeita a participação em actividades
políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de
soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política”. Isto é que
está certo. Quanto menos confusão houver entre política e justiça, melhor para
a sistema político democrático e melhor para o cidadão.
*Manuel Soares é presidente da Direcção da
Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Originalmente publicado pelo
jornal Público, de Portugal.
Cidade do Maciço dia-a-dia com Blog do Esmael
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